Memórias Póstumas

Wenner Gláucio – Membro da Academia de Engenheiros Escritores de Alagoas – ACEAL

Alma minha gentil, que te partiste
Tao cedo desta vida, descontente.
Repousa lá no Céu eternamente.
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te.
Alguma coisa a dor que me ficou da mágoa,
sem remédio, de perder-te.

Roga a Deus, que teus anos encurtou.
Que tão cedo de cá me leve a ver-te.
Quão cedo de meus olhos te levou.

Foi assim que, diz a lenda, Camões descreveu a perda da chinesinha Dinamene, de apenas 17anos, morta afogada quando naufragou, na foz do Rio Mecon, no continente africano, o navio em que ambos viajavam.

Se verdadeiro ou fantasioso o episódio, pouco importa, diante da superior beleza deste soneto, considerado dos mais perfeitos da Língua Portuguesa. Nunca a dor e a saudade tiveram mais elevada forma de representação, nem o sentimento de ausência foi jamais descrito com tamanha paixão.

Mal sabia eu, minha mãe Neusa, nas vezes sem contar em que analisei este texto em sala de aula nas horas de intervalo no meu curso de mestrado, há anos atrás, que ele viria a ser a expressão exata de minha própria dor e a da nossa família! Na verdade, bem antes de você partir, eu já a pressentia, e fiz minhas as agridoces palavras de Camões, sempre que a angústia me apertava o coração pelo agravamento de seu estado; em silêncio, mesmo longe, eu “orava” o triste poema, domingo após pós domingo, quando do meu plantão. Solidário à camoniana “mágoa sem remédio de perder-te”. Só aí, nesses instantes trágicos e premonitórios, eu pude avaliar a intensidade do lamento do grande poeta português!

Também com você partiu as “nossas almas” minha querida mãe, ou a metade delas que você representava. Pelo menos é o que deduzo desse vácuo infinito, que ficou nas casas das minhas irmãs Galba e Fátima”, deixando todos nós, com o espirito mutilado, capenga, a carregar pela vida afora seu aleijão irreparável. Camões o disse: “E viva eu cá na terra sempre triste”. É como, de fato, viveremos, sem o seu entusiasmo límpido e primaveril que lhes era peculiar, Dona Neusa!  Saiba que há vários cantos, nas casas das minhas irmãs, Galba e Fátima que ainda são seus, como também são suas as imagens que impregnam todos os cômodos das casas delas: Suas músicas que você cantarolava de Dalva de Oliveira (Bandeira Branca) ou mesmo o “Pirrot apaixonado” do Noel Rosa. É minha mãe Neusa! Alzheimer veio e degenerou do cérebro, porém não se atreveu a levar com ele, suas músicas preferidas, onde você cantava, comigo e minhas irmãs aos domingos.  Como esquecer frases banais –“Glaucio, meu Filho, como vai!!!”, “Oh! Meu filho tudo bem? Que ainda ressoam nos espaços vazios das duas casas ultimas, que você viveu ao longo de onze anos!

E em mais um ponto, para minha eterna desdita, Camões também acertou: você partiu “descontente”, em uma despedida sem fala, sem dor. Eu  pressenti que você não voltaria mais daquele hospital. Eu sabia minha mãe! Até porque houve toda uma preparação de forma espiritual, onde a grande maioria dos seus filhos de forma inconsciente sentiu e previu seu chamado, e vieram com exceção a Walter, meu irmão mais velho.

Você lutou até fim, sem choro, sem um único lamento. Quando ainda lúcida, nunca se queixou. Com a sua beleza clássica vc foi até o fim sem nenhuma queixa ou desespero. Você foi uma guerreira minha mãe Neusa, “a última das Moicanas” uma das últimas de uma espécie rara e valiosa.

Para nós que a acompanhamos nesses últimos anos com aquele “amor ardente” camoniano, dá para entender como se estivesse ouvindo de viva voz: você era um ser de vida, minha mãe e não de morte! Provam-no desde a heroica paciência com que suportava com briosa competência o sofrimento do seu dia-a-dia, até o “dom” de saber ver para além das aparências – privilégio de poucos, se não de eleitos! Você amava essa vida! E que deixou heroicamente, lutando como uma brava até o fim sem um lamento sequer! Para explicá-lo, só Jó bíblicos: como ele você era favorita de Deus!

Por último: olhe cá para baixo daí do seu “assento etéreo” Minha mãe Neusa, e se houver por bem ou seu refinadíssimo critério de justiça (que eu admirava com orgulho) lhe permitir estabelecer proporções, “leve-me a vê-la”. Pelo menos uma vez, com a mesma prontidão com que levaram dos nossos olhos” – cegos, malsãos, sem vida, desde que não a podem mais contemplar!

Até por lá, minha mãe Neusa por esse campo de margaridas brancas onde sonharam que você está! Com o último beijo do seu filho “Glaucio”, como você chamava.

                                Brasília, 28 de setembro de 2021